Por Reinaldo Azevedo, da Veja
Leio no Globo que a Polícia do Rio já identificou os bandidos que efetuaram, no domingo, uma série de disparos no Complexo do Alemão, pouco antes do início da quarta edição da corrida “Desafio da Paz”. A polícia já sabe, mas, até havia pouco, ninguém ainda tinha sido preso. Dado o padrão com que se tem fabricado “a paz” no Rio, é grande a chance de que não se prenda ninguém. O estado vai se tornando — ou já se tornou — um caso único no mundo em que se considera uma obrigação moral ou um imperativo ético ignorar a realidade em nome de uma crença, de uma convicção ou, sei lá, do que já se poderia chamar uma construção ideológica. A coisa chega à beira do delírio coletivo. Aquilo que vemos, aquilo que ouvimos, aquilo que constatamos, nada tem importância. Prestar atenção aos fatos se torna, então, coisa de gente de maus bofes, de sabotadores, de quem recusa o “desafio da paz”, dos “críticos de sempre”. Corra, carioca, corra!
Todos estavam lá para correr: autoridades, ONGs, deslumbrados da Zona Sul, batalhões policiais, parte da população local e, claro!, José Mariano Beltrame, secretário de Segurança, cotado para compor a chapa para a sucessão ao governo do estado com o atual vice-governador, Luiz Fernando Pezão (PMDB).
Uma situação hipotética
Imaginem aí, senhoras e senhores, a seguinte situação: o secretário de segurança de São Paulo — esta cidade sem vista para o mar — comparece, em companhia de sua tropa de elite, a um evento para, vá lá, que seja, “desafiar” o banditismo com “a paz” e é recebido por uma chuva de balas. Seria submetido a tal ridículo que não teria como se sustentar no cargo. O caso seria tomado como um símbolo de malogro da política pública aplicada na área. Ou não foram os bandidos que acabaram, ao recrudescer as ações criminosas, derrubando José Ferreira Pinto, ex-secretário de Segurança de São Paulo? As ocorrências passaram a ser debitadas pela imprensa na conta de Ferreira Pinto. Não faz tempo, a filha do agora ministro Guilherme Afif Domingos foi vítima de uma tentativa de assalto. Tom do noticiário: a violência no Estado seria de tal sorte que atingiu ATÉ a filha do então vice-governador, como se o cargo do pai pudesse, por alguma razão, tornar imune a filha… A taxa de homicídios em São Paulo corresponde a menos da metade da taxa do Rio.
A leitura peculiar que se faz das ocorrências no Rio, no entanto, leva a imprensa a considerar que os eventos que desafiam a política pública de segurança ou que, numa leitura racional, evidenciariam a sua falência são, na verdade, provas evidentes de sua eficácia. Não estamos mais no terreno da lógica, não estamos mais no terreno da racionalidade, não estamos mais no terreno dos fatos. Só o discurso religioso ou ideológico pode fornecer as explicações.
Beltrame, falou, então, para câmeras, microfones e gravadores mais do que benevolentes:
“Essa ação é oriunda de resquícios de uma facção que reinou durante décadas. Hoje, o Estado, através da Polícia Civil e da Polícia Militar, ocupou a área. É óbvio que essa facção, mesmo enfraquecida, ainda acredita que vai nos afastar daqui. Mas isso legitima que esta área está ocupada pelo Estado e que daqui nós não sairemos. Existe um trabalho de inteligência porque a população merece segurança”.
Eita! Os “resquícios” da ocupação da tal facção haviam, três dias antes, na quinta, fechado o comércio e as escolas no Complexo do Alemão. Quase 12 mil crianças ficaram sem aula. Os “resquícios” da ocupação, sabendo que o poder público e seu aparato bélico estavam presentes na “comunidade”, desafiavam a autoridade com uma saraivada de balas, mas Beltrame, como se o episódio evidenciasse o êxito do seu trabalho, proclama: “a população merece segurança”.
Como as palavras fazem sentido, eu presto atenção ao que diz o secretário, segundo quem “isso (os tiros) legitima que esta área (parte do Complexo do Alemão) está ocupada pelo Estado”. Estamos diante de uma visão essencialmente torta, lamento ter de escrever isto, da segurança pública e da relação da polícia com a população. BANDIDO NÃO LEGITIMA COISA NENHUMA! O Estado que chegou ao Alemão lá deveria ter estado presente desde sempre. Há, nas sublinhas desse texto, a ideia de que tanto bandido como polícia são forças legítimas, que disputam, perdoem-me o clichê, os corações e as mentes das comunidades.
Esse substrato intelectual equivocado tem importância definidora na polícia de segurança do Rio. No fim das contas, existem motivos por que a polícia não caça e não prende bandidos. Do ponto de vista puramente pragmático, convenham, espantá-los é bem mais barato. Bandido preso custa caro, e administrar presídios é das tarefas mais espinhosas e desgastantes que pode ter um governo. No que concerne a certa esfera de valores, há correntes minoritárias, mas muito influentes na imprensa, da opinião pública que ainda veem o banditismo como uma espécie de derivação teratológica da luta de classes. No fundo, seriam rebeldes primitivos que não tiveram a chance de direcionar de maneira adequada, política, a sua justa revolta. Com um pouco mais de teoria, teriam sido petistas, socialistas, esquerdistas, progressistas… Como não tiveram a chance de estudar com os marxistas da Zona Sul, viraram bandidos mesmo… Trata-se, assim, de uma mistura de Rousseau com sociologia do Posto 9: o bandido nasceu bom, a sociedade, nós (isto é, “eles”), é que o corrompeu. O nome disso tudo é má consciência.
Já escrevi na sexta sobre os episódios do Complexo do Alemão, antes ainda de a bandidagem ter recebido Beltrame com uma salva de… balas! Evidencio lá o que tenho escrito aqui há muito tempo: é claro que eu sou favorável à recuperação de territórios que haviam sido MONOPOLIZADOS pelo crime. Felizmente, existem arquivos, memória etc. Já lá se vão quase 20 anos do meu primeiro artigo que sustentava que era preciso retomar o espaço físico que havia sido sequestrado pelos bandidos, que haviam fundado um estado paralelo.
Mas é inaceitável, estupefaciente, que a política de segurança pública do Rio compreenda — e compreende — a não prisão de bandidos, a não ser em casos excepcionais e que rendam “mídia & flashes”. O pior é que esse é um dos seus aspectos mais elogiados pelo onguismo do miolo mole porque isso demonstraria um apego pela paz. Ignora-se, e já há casos, o risco que há em fazer com que o aparato policial conviva “pacificamente” com a bandidagem. Como a disciplina do crime é mais elástica e mais rentável do que a da polícia, a lógica se encarregará do resto.
Caminhando para a conclusão
Mas não há jeito, não! A narrativa criada para explicar aquelas escolhas é muito mais forte do que os fatos. Parte do Palácio do Planalto quer, por exemplo, que o candidato do PT ao governo de São Paulo seja o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Embora o estado exiba uma das menores taxas de homicídio do país (é bem provável que continue a ser a mais baixa), avalia-se que a segurança pública é um flanco que pode ser explorado pelo partido. E o contraponto da suposta eficiência e de uma política alternativa, acreditem, é o… Rio de Janeiro!
São Paulo concentra 40% dos presos brasileiros, embora tenha apenas 22% da população. A queda na taxa de homicídios no estado — mais de 70% em dez anos — é atribuída pelos especialistas “PTólogos” à política do desarmamento e, pasmem!, à suposta ação do PCC, que teria estabelecido uma espécie de “pax” na bandidagem. Não ocorre a esses analistas indagar por que, então, o desarmamento não teria provocado efeito semelhante no resto no Brasil. Também não lhes ocorreu por que a polícia de São Paulo, que teria feito um pacto de não agressão com o crime, prende bandidos, e a do Rio, que não teria feito acordo nenhum, os deixa soltos.
No universo da ideologia — e no da manipulação descarada da informação —, os fatos precisam ser combatidos para que a mistificação produza seus frutos.
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